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quinta-feira, outubro 13, 2005

a ouvir e ler: Schubert, D 960


1.
há uma melodia que habita rente às palavras e
sai do que as prende à morte. a terra é coruscante e melancólica
como a juventude doente. saber tudo isto em surdina,
numa espiral de saudades a que se deu ouvidos.

ah, coração ingénuo, coração aluado
nos bosques do entardecer, na terra de ninguém.
flutuas na agonia, ficaste um cão de rumos tristes,
um focinho de sangue aveludado no caderno

diário das paixões, quando a música exprime tão densos
remorsos vagabundos de viver assim
e tudo pode ser singelo, furtivo e lancinante
como uma oliveira a arder por dentro do seu silêncio.

2.
olha a sombra dos álamos: perpassa
nas águas do espelho desolado, quando o vento
se enrola assim na roda de fiar.
escuta lá fora o realejo das misérias do inverno.

quem passou por aqui? quem veio de tão longe?
quem cala a cotovia nas lavras da manhã?
que lampejo entrelaça o lilás e o luto?
em que fala amorosa nos dilaceramos?

a musa ensimesmada debruça-se, pousando
a sua mão inquieta no torpor das pálpebras.
a noite cai. o nó de corpo e alma desatou-se
e há nomes que se apagam na casca de uma árvore.

Vasco Graça Moura, «Laocoonte, rimas várias, andamentos graves», Quetzal Editores