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sábado, janeiro 06, 2007

A Escala do Meu Mundo


João Barrento publicou estas crónicas no suplemento «Mil Folhas» do Jornal Público e na revista Ler-Livros & Leitores, entre os anos 2000 e 2004.
Por esse motivo já conhecia uma parte destes textos, muito embora alguns venham agora mais crescidinhos.
Mas mesmo que não fosse esse o caso, João Barrento vale sempre a pena.
As suas crónicas e ensaios produziram sempre em mim a vontade de ler mais, e o prazer da descoberta de inúmeros autores, ou modos novos de abordar os já conhecidos.
Para aguçar o apetite, aqui vai um naco da crónica «Escritas: Drogas» (2001) :
«Garanto que queria continuar a escrever sobre a escrita em geral, desta vez sobre os seus ópios – os estímulos, as fontes de inspiração e coisas assim. Até fui à Net ler umas passagens das Confissões de um Fumador de Ópio, de De Quincey, em versão hipertexto. Queria lembrar como muita literatura seguiu o lema de Gottfried Benn «Não precisamos da realidade!» E como tantas e tantas páginas saíram de uma madalena molhada em chá de tília (Proust), de um «Torso arcaico de Apolo» (Rilke), de maçãs podres em cima da mesa (Schiller), do tabaco e do café de Balzac, do vinho de Goethe, da teqilla de Malcolm Lowry (ou do seu herói), do whisky de Batista Bastos ou de José Cardoso Pires (e escrevo assim e não «uísque», porque o Zé Cardoso Pires o tomava muito em bares com nomes ingleses, o English Bar do Cais do Sodré ou o Snob da Rua do Século) – isto, para já não falar do sexo em Henry Miller, do ópio de De quincey, do haxixe de Baudelaire e Benjamin ou da marijuana e do cannabis dos iluminados de 68.Mas de repente dou por mim a olhar para o nosso quintalinho literário e a perguntar-me: que se passa? A literatura tornou-se sóbria? Os escritores já não precisam de estímulos? A realidade, agora a cores, basta-lhes? É ela o grande ópio? Não se vê ninguém falar da santa aliança entre estímulos espirituosos e o trabalho do espírito. Quase tudo sóbrio e a trabalhar por obrigação. Acabaram-se os O’Neill e os Pachecos (o Luiz e o Assis), os cafés e as tertúlias de onde se saía, ou de gatas ou com a cabeça cheia de ideias para escrever, ou as duas coisas juntas. Grande parte da literatura caiu nas malhas de uma triste engrenagem comercial que se julga alegre e viva, mas é cinzenta e anémica. Ninguém arrisca uma gargalhada forte, satírica, a poesia anda melancólica, a prosa vive de memórias, o ensaio, depois do vigor de Eduardo Lourenço, academizou-se (e por mim falo). Falta-nos seiva (vamos buscá-la, de vez em quando aos livros de Maria Gabriela Llansol), falta-nos o descaramento do sátiro, a verve visceral, o humor certeiro – sempre vamos lendo o «Fora de Mercado» do Jorge (Silva Melo). A literatura que se faz será séria, sólida e serena, mas raramente nos desafia ou faz estremecer. Está aficar frouxa. É dos tempos.Salvam-se, e salvam-nos, os poucos que ainda sabem rir – o Armando (Silva Carvalho), que goza connosco e consigo próprio como ninguém, o Vasco (Graça Moura), que tem aquele jeito de pôr a erudição em cuecas sem que a erudição perca a nobreza e sem que as cuecas fiquem pretensiosas ou pirosas, a Adília (Lopes), que nunca ri, mas escreve às risadinhas e de forma insuperavelmente desopilante.»
Já agora, a não perder também o Barrento blogosférico com o seu Escrito a Lápis.