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segunda-feira, janeiro 22, 2007

Sumário Lírico

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um no seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,
os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas
com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,
diariamente somando anos, minutos indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este poema está incompleto. Tal como noutros blogues e sites, que se vão copiando mutuamente. É um dos defeitos da querida "rede": muito do que nela circula não tem garantia...

Aí vai o poema completo, como consta do livro "Cenas Vivas", ed. Relógio D'Água, 2000:


Sumário lírico

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um do seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,
os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas
com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,
diariamente somando anos, minutos indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.

Avança pelo estuário, golfinho entre golfinhos,
um, o que passou pelo interior de meu corpo,
menos vasto do que o mar, menos amplo do que o teu,
ó marca preta em vidro tão fosco de impreciso,
fosco de haver nevoeiro e esquecimento e fumos.

Recordo-me, reúno vogais, consoantes, de com a testa estar
na vidraça a murmurá-las, tão similares
em eco, a última, na eufonia de fumos e de bruma.
Último golfinho, afinal, diminuto ou imenso
que lacerou com o triângulo da cauda as brumas.

Estou no estuário, com rio e mar, onde nós
antes estávamos, balbuciantes, entre falar e ver.
Depois, um poema houve das doces salinas águas.
Mas o farol assente no rochedo, torreões, muralhas, sóis,
tudo é o cisco de agora para a unha num vidro.

E não avanço enquanto estiver presa à grua hodierna
que arranca as palavras do seu molde de coisas,
quando com os filhos ou amei ou vi a construção civil,
numa praceta inócua para a minha vida lírica.
Pois nada equivale ao vidro da vidraça do mundo.

Tenho cada vez mais modos de dizer das fileiras
de golfinhos ou o primeiro assombro. E entretanto
por detrás da vidraça passam na janela, onde o ouvido
houve no canto a sua homófona, ouve a melancolia
dos silvos de eu chorar os barcos dos pilotos,

únicos que navegaram no sal deste choro antes.
Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio exterior.
Barcos para África, entre torre e farol, levarem
vi vil guerra, armas de dor, morte poeirenta.
Mas hoje é a doença a singrar nessa rota pobre

que na vidraça perpassa, como golfinhos mortos
que voltassem, em cortejo, a serem vistos, perdidos
sob ti, Cassiopeia, que ainda estás aqui no vão da noite.
Estás a ter sido, a perdê-lo, a recuperá-lo, tu,
o eco do mar, quando te vi estar. Constelação

que no quadrante do céu, como em ardósia coloca
a sua letra, desde que soletrei no vidro o mar.
Tergiverso do campo para a cidade. Meu sonho
apenas poema, como todos fatal porque me destina.
Tenho de compilar cidade, guindastes, pomba, olhos

desses filhos discípulos do meu olhar. Imóveis
ficámos todavia noutro poema. Mas o anterior a filhos,
meu pensamento só, jorrava já em versos meus
concitados por esta janela velha, onde somente posso
retroceder, página a página, ao longo do meu tempo.

E o tempo não existe quando tudo se reúne.
Mas as frases de todos estão no lugar, meus poetas,
sendo o olhar sempre o puro tacto, quando o som
sai desta boca, sopro, e toca em sons e seres.
A faixa solar vermelha é um profundo fundo, só sonoro

e tangível na boca. E morrerei sem lançar um som vivo
para África, neste sumário lírico, redito.
Satisfaz-me o meu sol vermelho em mês de pouco ver,
pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim,
e mudamente vistos: imagem tão íntegra lírica

que vai descer à boca em última palavra minha.



Saudações poéticas,

Paulo Rato

5:24 da manhã, junho 22, 2008  

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