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segunda-feira, abril 02, 2007

À lupa

É um dos relatórios mais demolidores produzido nos últimos tempos pelo Tribunal de Contas. Falamos do Relatório de Auditoria nº13/2007, da 2ª secção daquele tribunal, e intitulado «Auditoria aos Gabinetes Governamentais».
São 250 páginas, em PDF e possíveis de download aqui, e que põem a nu a apropriação do aparelho de Estado e da Administração Pública por este governo, e pelos 2 governos que o antecederam (Durão Barroso e Santana Lopes).
O relatório debruçou-se exclusivamente sobre o triénio 2003-2005 e abrange portanto estes três governos. Mas tivesse o mesmo tomado como objecto de análise tempos mais recuados, e o relato não seria melhor.
A adjectivação à actuação deste e dos 2 governos que o antecederam não é nada bonita:
- recrutamento de colaboradores feito sem a observância dos "critérios de boa gestão financeira economia da eficácia e eficiência", e que privilegia uma "actuação discricionária";
- recrutamento feito, na maior parte das vezes, sem critérios pré-definidos, claros e objectivos, e nem sempre com justificação dos mesmos;
- selecção de pessoal feita de forma "pouco transparente", dada a "opacidade do teor e conteúdo dos múltiplos despachos" dos gabinetes, e algumas vezes "pouco claros na especificação e precisão das situações de recrutamento";
- habilitações do pessoal contratado que não parecem terem sido tidas em conta e muitos casos em que não foram dadas justificações para a disparidade salarial existente;
- uma despesa global destes gabinetes ministeriais que ascendeu a 12,8 mil milhões de euros, sendo que 216 milhões corresponderam a gastos específicos de funcionamento dos próprios gabinetes.;
- transferências que "são estranhas a qualquer tipo de apoio aos gabinetes ministeriais e sem a mínima contrapartida para os mesmos, assim se desvirtuando, orçamentalmente, as suas despesas reais";
- gastos exorbitantes em estudos, sendo que no biénio 2004 e 2005 o Estado chegou a gastar mais de quatro milhões de euros;
- por amostragem dos 205 gabinetes analisados, verificou-se que só em 30 deles foram feitas 1069 contratações, nestes três anos em análise;
- recurso a esquemas de contorno da lei, com os especialistas recrutados a serem "sistematicamente" equiparados a adjuntos e a secretários pessoais, de modo a contornar o carácter eventual do cargo, e fazendo assim que pessoal que deveria ser recrutado para fazer face a necessidades "excepcionais e temporárias" se transforme em pessoal "permanente";
- "migração" de lugares dos gabinetes ministeriais que têm número limite fixado por lei, para outras figuras "sem limite" legal, como é o caso dos especialistas na prática ocuparem funções de assessoria;
- "uma parte significativa" das nomeações para os gabinetes não refere nenhum lugar de origem, o que significa que anteriormente estes recrutados eram ou profissionais liberais ou não tinham tido ainda qualquer emprego.

E por aí fora! Um ou outro órgão de comunicação social equipara estes gastos ao que custariam, não um, mas vários aeroportos da OTA.
A comparação é obviamente pertinente. Mas também poderíamos comparar tudo isto, com aquilo que este governo vem dizendo, sugerindo, reformando, sobre a administração pública.
Atenção que não está em causa a necessidade de se alterarem uma série de paradigmas de funcionamento da administração pública, já que este sector precisa de facto de mais e melhor gestão. Como aliás precisam igualmente todos os outros sectores de actividade em Portugal.
O que fica mais uma vez demonstrado, é que a reforma da administração pública é apenas mais uma bandeira, como o foram a paixão da educação no tempo de Guterres, ou o choque tecnológico (é verdade, onde está ele? Há tanto tempo…, não é?) já com este governo.
A administração pública e os funcionários públicos foram aos poucos transformados nos grandes bodes espiatórios da crise orçamental e económica do país, aproveitando aquilo que de mais mesquinho, atávico e salazarento tem o país e cada português dentro de si. A inveja, o olhar sempre para o vizinho de modo a culpá-lo por tudo, o não assumir de responsabilidades próprias, tornaram a campanha contra os funcionários públicos o meio mais fácil de manter o governo com bons índices nas sondagens.
Por isso é que este relatório é tão mau aos olhos do governo. É que com este relatório fica a nu aquilo que de facto na máquina do Estado está mal, e que precisaria urgentemente de ser alterado. E pior ainda é que estes monstruosos gabinetes, estas autênticas agências de emprego, ainda estendem os seus tentáculos para cada uma das dezenas de organismos públicos sob a sua tutela. Toda a cúpula dirigente é recrutada e escolhida exactamente do mesmo modo. Com as mesmas regras, a mesma desfaçatez, a mesma falta de vergonha. Se soubermos que esta acção se estende a directores-gerais, sub-directores gerais, presidentes e vice-presidentes, directores de serviço e chefes de divisão, num total de centenas de chefias e dirigentes, então estamos conversados.
O retrato não é bonito, e nada, mas mesmo nada, nas extensas medidas de reforma da administração pública anunciadas pelo governo do ex-engº Sócrates, se mexe neste pequeno aspecto da máquina do Estado.
É pena que o amiguismo e o tráfico de influências não sejam considerados como o verdadeiro ninho e maternidade da corrupção, como de facto o são. E que visto e analisado o fenómeno deste bem mais realista prisma, vê-se então como tudo está minado de lés a lés, e já com hipoteca para o futuro, pois é de pequenino que se vai torcendo o país .
A cunha é a escola da corrupção. Ou como disse Milôr Fernandes, e já algures neste blog repeti, «A corrupção começa no cafezinho».
Mas este é o grande calcanhar de Aquiles de todos os políticos e governantes, e por isso mesmo esta é a grande e única verdadeira reforma (revolução?) que falta de facto fazer, uma vez que todas as outras estão umbilicalmente a esta ligadas.
O Presidente da República, num dos seus primeiros discursos e até antes, durante a campanha eleitoral, também fez desta luta a sua bandeira. Mas creio que infelizmente Cavaco Silva estava apenas a pensar na grande corrupção, aquela de cartilha, à napolitana.
Falta-lhe cultura sociológica para perceber onde tudo está, onde tudo começa? Não creio, pois isto é até apenas uma questão de bom senso e de portuguesismo.
Quem é português, sabe o que é o jeitinho e o que é a cunha.
E quem sabe o que é o jeitinho e a cunha, sabe também o que é o amiguismo e o tráfico de influências. E por aí fora e acima.
Ele, melhor que ninguém, sabe igualmente que este é o fio com que também (e todos os outros) coseu as linhas das fidelidades e dependências da sua governação.
Mas parece-me que estaremos bem mais perto de voltar a ouvir falar de "forças de bloqueio" da parte do governo (com outro qualquer nome novo), do que de alguma acção pedagógica e de força vinda dos lados de Belém.
E essa nomenclatura também Cavaco a conhece.
Será isto a "cooperação estratégica"?

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